Bem, vocês vão entender conforme lerem.
Eu: Mãe, como eu era quando era criança? Você tem que ser sincera.
Mãe: Você era até engraçada, Viviane... porque você brincava com um monte de coisas, mas às vezes se irritava com alguma coisa. (Começou a rir)
Eu: Isso não fez o menor sentido...
Mãe: É que assim, você era de boas e de repente, você meio que se irritava com alguma coisa. Não era linear.
Eu: Tá, mas o que costumava me irritar?
Mãe: Ah, sei lá... Por exemplo, você era muito apegada a casa, as suas coisas, então pra viajar com você era um sufoco, você ia e já queria voltar.
Eu: E isso porque eu era uma criança engraçada?
Mãe: É, porque ao mesmo tempo você topava uma porção de coisas da sua irmã, porque com a diferença de dez anos, ela te fazia meio que de bonequinho e você topava as brincadeiras. Você tava sempre no meio do pessoal mais velho, você se enturmava bem. E obviamente eles faziam suas vontades, então você se sentia um pinto no lixo porque era o centro das atenções.
Eu: Ok, fala uma coisa engraçada que eu fiz quando era mais jovem.
Mãe: Uma coisa que eu achei muito engraçada que você fez foi aquela redação... Foi no colégio, você comparou o colégio com uma prisão e entregou pros professores. Aquilo ali eu guardei. Ah, e uma coisa que eu lembrei agora, você não era como sua irmã pra dormir, isso era uma característica interessante. Você era aquela coisa de criança mesmo, de dormir mais cedo, você capotava. Às vezes, a gente via você fazendo alguma coisa e no segundo seguinte você tava dormindo em cima das coisas. Parecia que sua pilha tinha acabado.
Eu: Ou seja, eu sempre fui a filha favorita...
Mãe: Isso é você que tá dizendo...
Eu: Não, beleza. Se você tivesse que mudar meu nome, qual seria?
Mãe: Serafina. (Caiu no riso)
Eu: Puta que pariu, mãe...
Mãe: Catarina?
Eu: Tá, chega. Quando eu saio pra comer, o que eu sempre peço? Algo que eu gosto muito de comer.
Mãe: Eu sei que você adora comida japonesa. Então acho que se puder te dar essa opção, você vai.
Eu: Eu vou.
Mãe: Mas você também vai bem na massa, né? Pizza...
Eu: Delícia. Tá, diga uma coisa que você gostaria que eu fizesse.
Mãe: Eu acho que você precisa desenvolver é foco. Porque você às vezes se entusiasma e perde o gás. Porque assim, a gente percebe que a tua energia está numa linha, mas você fica subindo e descendo. Se você conseguisse canalizar sua energia para ter um objetivo e chegar até o final, seria bom.
Eu: Ok, vamos lá. O que eu faço que mais te incomoda?
Mãe: Omitir. Pra não dizer mentir. Você peca pela omissão, isso me incomoda porque eu jogo limpo, jogo aberto.
Eu: Acho que vou tirar essa pergunta porque não está me favorecendo... Tá, diga uma coisa pela qual eu sou obcecada.
Mãe: Celular!
Eu: Não!
Mãe: Total! Se eu arrancar isso aqui de você, é a morte. Ué, tudo bem, então me dá o celular. Eu quero ver você ficar 24h sem ele. Pra mim isso é vício. Por que? Tem alguma outra coisa que você é viciada e eu não sei?
Eu: Lógico. Tatuagens...
Mãe: Tá, mas tatuagem não é vício. Você fez algumas, óbvio que você vai querer fazer outras, mas assim, não vejo isso como uma obsessão. Vejo isso como um gosto. "Gosto e faço".
Eu: Você gosta das minhas tatuagens?
Mãe: Todas não.
Eu: Qual você não gosta?
Mãe: Essa daí...
Eu: As pessoas não sabem de qual você está falando.
Mãe: Essa aí desse cavalo aí de Tróia. Esse bicho aí colorido... Não curti muito não.
Eu: É um unicórnio. Mas tá bom, mãe, valeu. Agora vamos para umas perguntas mais profundas, que é o tema do meu blog. Eu não posso incluir meu pai nisso porque a entrevista não é com ele e você não pode falar por "nós", tem que falar por você, tá? Como foi descobrir que eu tinha algum tipo de transtorno psicológico, sem saber qual era, só descobrir assim "Ela tem alguma coisa"?
Mãe: Eu acho que foi... impactante porque na verdade a gente meio que descobriu, no caso eu descobri, com você já entrando numa crise, porque por conta das suas omissões, a gente não teve tempo de se adaptar, a gente não teve tempo de acompanhar o início. Então quando a gente descobre, a gente descobre já no meio do furacão. Veio logo uma sequência de descobertas.
Eu: Como a maioria das pessoas ao meu redor, você também não sabia o que era border, né? Você veio a descobrir com a psicóloga e psiquiatra falando... e você nunca tinha visto uma crise minha antes. A primeira crise, ou a segunda - a que você lembrar -, foi muito ruim?
Mãe: Não. Acho que uma das últimas foi a pior.
Eu: Sei qual foi. Então, as primeiras foram só susto?
Mãe: É, porque você meio que ficava invocada, irritada, quebrava alguma coisa, se machucava, mas meio que ia caminhando, né... Acho que aquela última foi a pior.
Eu: E como mãe, pensando não só em mim, mas em todos os adolescentes que tem um transtorno psicológico. Essa questão da gente pensar em suicídio e às vezes até botar em prática, como fica isso para você?
Mãe: Muito ruim. Muito ruim porque eu acho que nenhuma mãe quer perder um filho. Então pensar que o filho quer acabar com a vida, isso é muito ruim... É lógico que conversando a gente entende que tem uma série de coisas que interferem, mas quando você pensa que a pessoa está pensando em/ou pratica mesmo (faz a tentativa) e as relações, o teu convívio não é capaz de parar isso só na intenção... O pensamento é como diz o ditado "A gente não tem domínio sobre o pensamento", então o pensamento ele vem e... e às vezes acaba te tomando de alguma forma e você meio que não consegue parar. Mas não quer dizer que você vá tentar. Aquilo passa pela sua cabeça, mas você não bota em prática. Mas quando chega no momento de botar em prática, então assim, você considerar aquilo ali e o teu dia a dia com a família, as tuas relações elas não conseguirem fazer parar, isso dá uma sensação de impotência, de incapacidade. A gente se sente desvalorizado. "Poxa, mas não tem importância esse amor que existe entre a gente? Aquilo ali foi mais importante? Aquela decepção consegue suplantar o amor que existe da família, esse cuidado?" Aí você fica assim "Caraca, como que uma coisa pode chegar e sair devastando tudo, como se essas coisas fossem todas mais frágeis que tudo..."
Eu: Certo, mas no meu caso, eu tenho muito apoio familiar (e dos meus amigos também), mas o familiar é perfeito. Mas e quem não tem? Quando os pais acham que é uma frescura ou uma fase?
Mãe: Mas aí, filha, não é só com essa doença. Nós temos uma população que carece de informação e essa população não é só o pessoal desprovido de educação ou acesso a escola. Tanto é que tem gente com preconceito. Tem gente com psoríase que perde o emprego porque aquilo ali prejudica a aparência, tem gente que pensa que aquilo é contagioso. E isso eu tô falando de psoríase, uma doença simples como vitiligo, a convulsão que muita gente não socorre porque pensa que aquela baba vai contaminar, vai passar doença. Entendeu? Então assim, as pessoas não conhecem as doenças no geral, falta informação. E aí essa coisa de dizer que é frescura, ainda mais uma doença que atinge a mente, o emocional, que não é uma coisa visível... Quer dizer, é visível no comportamento, mas você não vê como uma lesão, uma queimadura. Ainda por cima, é difícil separar no seu quadro, por exemplo, o quanto nisso daí é da doença e o quanto é da Viviane. A Viviane de 20 anos, imatura, em processo de amadurecimento... Eu acho que essa dificuldade dos pais está por aí, das pessoas entenderem o que é a doença, até onde você consegue avançar ou quando precisa recuar. Porque por exemplo, eu sou desse jeito muito franco, muito aberto, gosto das coisas claras para não termos problemas de entendimento e desgaste. E às vezes eu tenho que lidar com você segurando informação, omitindo, mas eu preciso respeitar o seu tempo, que às vezes não é o meu. Isso gera conflito? Gera. Mas eu tento apoiar o máximo que eu posso.
Eu: A gente não briga muito né?
Mãe: Não.
Eu: Como você se sente sabendo que você é um dos meus principais apoios? Que quando eu entro em crise, se você não está perto eu entro na crise tensa? Porque você sabe que quando eu estou mal, eu vou procurar você, eu fico te cercando. E se eu não tenho você por perto, eu fico desesperada, nervosa...
Mãe: Isso me preocupa, né? Porque primeiro que eu não sou eterna, segundo que nem sempre eu posso estar do seu lado. Não tenho como deixar de trabalhar. Até para ajudar no seu tratamento, seus estudos. Isso me preocupa pela responsabilidade financeira, por essa responsabilidade de virar porto seguro para você... porque caramba, eu não tô 24h por dia perto de você. Por isso eu fico preocupada, porque você precisa encontrar mecanismos para poder superar esses momentos de crise sem eu estar presente. Isso é um desafio para você.
Eu: Me sinto desafiada. Última coisa, você já ficou mal por me ver mal?
Mãe: Já. Inúmeras vezes. Inclusive naquela briga que você me colocou como responsável pela sua doença. Não estou negando que eu seja responsável, se tem caráter genético. Mas é igual a miopia. Eu sou míope. Sou filha de pais míopes. Você saiu com pouco grau de miopia e sua irmã com muito. Só se eu não tivesse filhos...
Eu: Tá de boas?
Mãe: Sim, por mim tá tranquilo. Mais alguma coisa?
Eu: Não, tá show. Obrigada, mãe.
Quero agradecer à minha mãe, Hélia, pelo tempo e franqueza nas respostas gravadas. Como eu disse para ela pouco antes da entrevista começar, eu prefiro falar sobre o assunto do que omitir e fingir que não existe. Quanto mais informação, melhor. Então agradeço de coração a participação da minha mãe para expôr um lado que nós não temos acesso sempre: o lado dos pais.
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